Pauta da vez
Por: Carolina Costa
O Brasil enfrenta uma nova onda de intoxicações por metanol. Só em setembro, nove pessoas foram atendidas em São Paulo após consumir bebidas adulteradas, e três mortes estão sob investigação duas em São Bernardo do Campo e uma na capital. O que impressiona desta vez é o cenário: os casos ocorreram em bares e envolveram destilados populares como gim, uísque e vodca, atingindo consumidores que acreditavam estar em ambientes seguros.
A gravidade levou a Prefeitura de São Paulo a emitir alerta público e o Ministério da Justiça a recomendar mais rigor na checagem e rastreabilidade dos produtos. Mas a pergunta que ecoa é: como chegamos a esse ponto?
A resposta passa por uma decisão tomada em 2016, no Governo Michel Temer.
Foi ali que a Receita Federal desativou o Sistema de Controle de Produção de Bebidas (SICOBE), uma tecnologia que monitorava em tempo real a fabricação nas fábricas e funcionava como barreira contra fraudes e adulterações. O argumento oficial foi o alto custo (cerca de R$ 1,8 bilhão por ano) e a suposta obsolescência do modelo.
O Tribunal de Contas da União (TCU) contestou a medida, declarando que a desativação foi ilegal, já que a lei obrigava o uso de equipamentos de medição. Mais do que números na arrecadação, o que se perdeu foi a capacidade do Estado de rastrear o que chega ao copo do consumidor.
Desde então, o Brasil coleciona tragédias. Em 2020, a contaminação da cerveja Belorizontina, em Minas Gerais, matou e deixou sequelas em dezenas de pessoas. Agora, em São Paulo, destilados adulterados com metanol voltam a ceifar vidas.
Enquanto isso, o setor de bebidas pressiona contra a retomada do sistema. As grandes empresas alegam custo e inviabilidade, mas o mesmo TCU calcula que o país perde bilhões por ano em evasão fiscal sem o SICOBE. O lobby fala mais alto do que a saúde pública. Só em 2025, mais de 160 mil produtos falsificados já foram apreendidos um retrato do tamanho do mercado ilegal que prospera sem controle.
O metanol é altamente tóxico. Uma dose pequena pode causar cegueira, falência renal e morte. Os sintomas iniciais: dor de cabeça, visão turva, náusea muitas vezes parecem banais. Mas, quando o diagnóstico chega, já é tarde.
Quase uma década depois da decisão de Temer, o tema voltou ao Supremo Tribunal Federal. O país ainda discute se terá ou não um sistema de fiscalização robusto, enquanto consumidores continuam expostos a uma roleta russa em bares e supermercados.
A discussão sobre fiscalização ganha ainda mais peso quando lembramos que o Sistema de Controle de Produção de Bebidas (SICOBE) continua suspenso por decisão liminar do ministro Cristiano Zanin, no STF. O Tribunal de Contas da União havia determinado sua retomada, mas Zanin atendeu a um pedido da AGU, argumentando que a volta do sistema poderia gerar renúncia fiscal de R$ 1,8 bilhão ao ano e criar riscos à própria fiscalização da Receita.
Um estudo elaborado por dois professores da FEA-USP defende a reativação do SICOBE, como forma de ampliar a arrecadação federal e reduzir a evasão fiscal no setor.
Segundo o parecer técnico dos economistas José Roberto Securato e José Roberto Ferreira Savoia, entre 2017 e 2023 a receita líquida das empresas de bebidas cresceu mais de 83%, enquanto os tributos pagos como IPI, PIS e Cofins/ avançaram apenas 34%, sugerindo que a retomada do SICOBE poderia recuperar até R$ 15 bilhões, contrariando a posição do ministro Zanin.
O caso segue pendente de julgamento definitivo, mas, na prática, significa que o país segue sem um mecanismo robusto de rastreamento de bebidas justamente em um momento em que mortes e intoxicações por produtos adulterados voltam a se multiplicar.
A cada tragédia, a pergunta se repete: até quando a política vai brindar com a indústria, enquanto a conta é paga com vidas?
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